20 de novembro de 2008

Os trabalhadores do mar

Victor Hugo, 1866, França

A obra é um riquíssimo repertório de sentidos sobre a relação entre o homem e o mar, com histórias de viagens e de territórios distantes. Narrativa épica que explora o oceano para também navegar pela alma humana, seus medos, anseios, potências e misérias.

O livro nos apresenta Gilliatt, um homem simples que, sozinho, luta contra o mar, contra os elementos e contra as possibilidades, suplantando a fome, a sede, o frio e a solidão, tudo em nome do amor. A Durande, o barco ao qual vai em socorro, e Deruchette, a jovem pela qual está apaixonado, são, respectivamente, cenário e idéia através dos quais Gilliatt transcende todos os limites humanos. Gilliatt é um gigante, um herói, um Ulisses, um "Jó Prometeu".

Se de um lado temos o mar, com toda sua grandeza e com todo assombro que pode provocar, do outro temos o homem, finito e precário, mas disposto a lutar. São dois oceanos juntos nessa fascinante história escrita no século XIX.

Transcrevo algumas passagens brilhantes:

O mistério das coisas
"Nada mais perturbador do que ver manobrar a difusão das forças no insondável e no ilimitado. Procuram-se os fins. O espaço sempre em movimento, a água infatigável, as nuvens que parecem afadigadas, o vasto esforço obscuro, toda essa convulsão é um problema. Que faz este perpétuo tremor? Que constróem estes ventos? Que levantam estes abalos? Em que se ocupam os choques, os soluços, os gritos? Que faz todo esse tumulto? O fluxo e refluxo dessas questões é eterno como a maré" (p.230).

Natureza, homem e máquina
"O mar e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de máquinas. As forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas. Entre os dois organismos, um inesgotável, outro inteligente, trava-se o combate que se chama navegação.
Uma vontade no mecanismo faz contrapeso ao infinito. Também o infinito encerra um mecanismo. Os elementos sabem o que fazem e para onde vão. Não há força cega. Cabe ao homem espreitar as forças e descobrir-lhes o itinerário.
Enquanto se não descobre a lei, prossegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma espécie de vitória perpétua que o gênio humano vai ganhando a todas as horas do dia em todos os pontos do mar. A navegação a vapor é admirável porque disciplina o navio. Diminui a obediência ao vento e aumenta a obediência ao homem" (p.146).

Vida e morte
"Toda natureza devora ou é devorada. As presas mastigam-se umas às outras [...] Todas as criaturas entram umas nas outras. Podridão é alimentação. Assustadora limpeza do globo. O homem, carnívoro, também é coveiro. A nossa vida é feita de morte. Tal é a lei terrífica. Somos sepulcros" (p.320).

Viver é arriscar
"Nenhum pássaro ousaria chocar, nenhum ovo ousaria abrir, nenhuma flor ousaria desabrochar, nenhum seio ousaria aleitar, nenhum coração ousaria amar, nenhum espírito ousaria voar, se pensasse nas sinistras emboscadas do abismo" (p.321).

Viver é imprevisível
"O homem é o paciente dos acontecimentos. A vida é um perpétuo sucesso, imposto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso. As catástofres e as felicidades entram e saem como personagens inesperadas. Têm a sua fé, a sua órbita, a sua gravitação fora do homem. A virtude não traz a felicidade, o crime não traz a desgraça; a consciência tem uma lógica, a sorte tem outra; nenhuma coincidência. Nada pode ser previsto. Vivemos de atropelo. A consciência é a linha reta, a vida é o turbilhão. O turbilhão atira à cabeça do homem caos negros e céus azuis. A sorte não tem tem a arte das transições. Às vezes a vida anda tão depressa que o homem mal distingue o intervalo de uma peripécia a outra e o laço de ontem a hoje" (p.379).

A força da impotência
"Ser impotente é uma força. Diante das nossas duas grandes cegueiras, o destino e a natureza, é na sua impotência que o homem acha o ponto de apoio, a oração.
O homem socorre-se do próprio medo; pede auxílio ao pavor; a ansiedade aconselha o ajoelhar.
A oração, enorme força própria da alma, é da mesma espécie que o mistério. A oração dirige-se à magnanimidade das trevas; a oração contempla o mistério com os olhos da sombra, e, diante da fixidez poderosa desse olhar súplice, sente-se um desarmamento possível no ignoto.
Essa possibilidade entrevista é já uma consolação" (p.343-344).

Corpo e alma
"O corpo humano é talvez uma simples aparência, escondendo a nossa realidade e condensando-se sobre a nossa luz ou sobre a nossa sombra. A realidade é a alma. A bem dizer, o rosto é uma máscara. O verdadeiro homem é o que está debaixo do homem. Mais de uma surpresa haveria se pudesse vê-lo agachado e escondido debaixo da ilusão que se chama carne" (p.43).

A perseverança transcende o ordinário
"O olho do homem é feito de modo que se lhe vê por ele a virtude. A nossa pupila diz que quantidade de homem há dentro. Afirmamo-nos pela luz que fica debaixo da sobrancelha. As pequenas consciências picam o olho, as grandes lançam raios. Se não há nada que brilhe debaixo da pálpebra, é que nada há que pense no cérebro, é que nada há que ame no coração. Quem ama quer, e aquele que quer relampeja e cintila. A resolução enche os olhos de fogo; admirável fogo que se compõe da combustão dos pensamentos tímidos. Os teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem um assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra: - Perseverança. A perseverança está para a coragem como a roda para a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo. Insensata é a cruz; vem daí a sua glória. Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtém o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não inclui o parar. Da queda sai a ascenção. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo especioso; não assim os fortes. Perecer é o talvez dos fortes, conquistar é a certeza deles. O desdém das objeções razoáveis cria a sublime vitória vencida que se chama o martírio" (p.255).

Um comentário:

Anônimo disse...

É. Esse livro é sensacional. :D