26 de abril de 2008

Escravidão e universo cultural na colônia (não-ficção)

Eduardo França Paiva, 2001, Brasil

Logo na orelha da obra, um breve texto do historiador francês, Serge Gruzisnky, faz interessante apresentação da pesquisa elaborada por Eduardo França Paiva. Copio um trecho:

“Como os homens e as mulheres submetidos à escravidão viviam essa condição? Qual podia ser sua margem de manobra? Qual era o lugar dos forros nessa sociedade, de que maneira e por qual preço conquistavam sua liberdade? Quais eram as relações dos escravos e dos forros com os brancos, donos de escravos, quer fossem ricos ou pouco fortunados?
Para responder a estas perguntas e romper os clichês que ainda embaraçam (obstruem) as nossas memórias e historiografias, Eduardo França Paiva explora incansavelmente os arquivos mineiros do século XVIII. [...] Ao mergulhar no laboratório sociocultural extraordinário que constituiu Minas Gerais, o leitor descobrirá uma sociedade complexa, móvel, cheia de contradições, no seio da qual negros e mulatos, homens e mulheres, aparecem integralmente como protagonistas da história do século XVIII”.

Escravidão e universo cultural na colônia – Minas Gerais, 1716-1789 é um trabalho referência da nova historiografia sobre a escravidão no Brasil. A obra lança um novo olhar para a sociedade escravista, enriquecendo nossa compreensão sobre as relações sociais envolvidas nesse contexto. Longe de querer negar a escravidão ou de querer torná-la um palco de amenidades, o objetivo de Eduardo França Paiva é, como já adiantou Gruzisnky, sair do lugar comum e perceber que tanto escravos como senhores foram sujeitos da história na qual viveram e que a dicotomia dominante/dominado explica muito pouco dessa história.

“É através de legados ricos como os deixados nesses papéis [os testamentos e inventários pesquisados pelo autor] que se torna possível, por exemplo, o ataque ao que venho chamando de imaginário do tronco, tão arraigado no entendimento sobre a escravidão brasileira. Isto é, ao imaginário sobre a escravidão e os escravos, construído sobre mitos, exageros e versões ideologizadas ou moldadas pelo pragmatismo político. Versões que de forma caricatural condenam a posteriori os escravos ao trabalho desumano e intenso ou ao castigo corporal, como se a vida desses agentes históricos, com exceção dos que se rebelavam, fugiam ou se aquilombavam, se restringisse a essas balizas. No entanto, os libertos testadores demonstraram em seus relatos que o tronco e os outros instrumentos de coerção física e moral não tiveram, pelo menos em áreas urbanizadas do setecentos, emprego tão intenso e corriqueiro quanto se acredita generalizadamente hoje. Este tipo de violência fora substituído por outros, como as restrições à ascensão social dos forros e as interdições de variada natureza impostas indistintamente a cativos, a libertos e a seus descendentes. Em muitas outras ocasiões o controle violento dos mancípios foi substituído por acordos que interessavam a proprietários e a propriedades e que, freqüentemente, reverteram-se em alforrias individuais e coletivas. E não se tratava de agrupamentos reduzidos numericamente. Ao contrário, refiro-me à maior aglomeração de escravos e de libertos entre as capitanias do Brasil e uma das mais importantes, se não a mais importante, de todo o Novo Mundo escravista, no século XVIII” (p. 24-25).

Sobre uma classe intermediária urbana nas Minas do século XVIII
“O setecentos mineiro é realmente um marco especial para todo o império português. A riqueza era acentuadamente concentrada em poucas mãos, a miséria fazia parte da vida cotidiana dos núcleos urbanos e de áreas rurais, mas conformara-se uma classe intermediária urbana que tornava aquela sociedade diferenciada. A importância desse grupo provinha diretamente da dimensão quantitativa atingida por ele, assim como de seu poder de influência. Além disso, seus integrantes produziam riqueza, pagavam impostos e eram consumidores pertinazes. Já o sabia bem o Conde das Galveas, governador das Minas, em 1732, quando advertia que o trabalho dos forros rendia impostos necessários ao rei. Exatamente os forros, pois eram eles que constituíam parcela respeitável dessa camada intermediária” (p.26).

Uma economia diversificada
“Livres, libertos e escravos compunham a sociedade que se instalara no que antigamente era chamado de sertões. [...] Mas não era apenas isso. Eles compunham, todos, embora com importância diferenciada, o mercado, o grande, dinâmico e diverso mercado emergido nas Minas do setecentos. Através dessa enorme demanda comercial foram estreitados os contatos entre a Colônia e longínquas praças: Índia, Europa, África. Às Minas chegaram tecidos, pedraria e contas, louças, panelas e utensílios domésticos, calçados, chapéus, luvas, lenços, meias e ornamentos variados, além de certos alimentos e bebidas de proveniência diversificada” (p.26-27).

Uma sociedade complexa
“Chegou, também, gente oriunda de muitos lugares distantes para aí se estabelecer. Os encontros pessoais, materiais e culturais foram inevitáveis e corriqueiros. Resultaram na aproximação entre universos geograficamente afastados, em hibridismos e em impermeabilidades, em (re)apropriações, em adaptações e em sobreposição de representações e de práticas culturais. Por conta disso o estudo pretende contribuir para reflexões historiográficas que abarquem extensão ampla” (p.27).

A pesquisa
Eduardo França Paiva estuda, ao todo, 859 testamentos e inventários de homens e mulheres originários de várias partes do Brasil e do mundo ou mesmo nascidos em Minas. O grupo é dividido entre homens livres, homens forros, mulheres livres e mulheres forras.

Entre as conclusões que o autor chegou após a análise desses documentos está o fato de que, mesmo sendo a ascensão social um privilégio dos brancos, o enriquecimento dos negros libertos era possível. Destaque para o sucesso da mulher nesse cenário:

“A ascensão social era privilégio, portanto, de alguns brancos e isso era garantido pelas leis e ordenações que vigoraram na América portuguesa. [...] Mas, quanto ao enriquecimento de libertos e de seus descendentes, isto não foi possível interditar. O fenômeno era muito mais freqüente, claro, nas regiões mais urbanizadas. A possibilidade de ascensão econômica foi concretizada por vários desses antigos escravos e por seus filhos e netos nascidos livres, embora as grandes fortunas coloniais permanecessem entre alvas mãos. [...] Entre os que lograram enriquecer, as mulheres constituíram a maioria, assim como formavam, também, a parcela mais numerosa dos alforriados” (p.67).

Liberdade e preconceito
“Proprietários de escravos, às vezes enriquecidos, libertos do cativeiro, mas sempre estigmatizados pela cor da pele, que denunciava o passado de submissão, a origem presa a grilhões e a indiscutível condição de inferioridade intelectual e cultural. Os forros, mesmos os que experimentavam ascensão econômica, não escapavam da discriminação cultivada abertamente ou de maneira camuflada pela sociedade colonial. De toda forma, o fato de terem se libertado e de terem formado um enorme contingente populacional – algo próximo a 120.000 indivíduos, no final do século XVIII, apenas nas Minas – já é o suficiente para ajuntá-los em agrupamento distinto” (p.68). Para efeito de comparação, a população de escravos nesse período era de cerca de 170.000.

O imaginário do tronco
O autor nos relata a distorcida compreensão da sociedade escravista que vem imperando no senso comum e que passou a ser combatida pela historiografia brasileira produzida a partir da década de 1980:

“A imagem de violência física empregada incessantemente sobre os escravos transformava as relações escravistas coloniais em contatos sempre antagônicos, marcados pela desconfiança, pela revolta e pelo medo. Não obstante, reconheciam-se os cativos como agentes históricos [...] apenas quando se revoltavam, fugiam ou matavam, desconsiderando qualquer outra estratégia de resistência menos evidente que essas. As escravas, sempre, eram exploradas sexualmente e quase nada faziam além do serviço doméstico e da reprodução biológica. A família, entendida sempre a partir de um modelo europeu e cristão, não existia entre os escravos no Brasil, e o mais comum era haver um ou mais escravos reprodutores nas senzalas, responsáveis pela fecundação das fêmeas. Os libertos, quando mencionados, sempre ganhavam e jamais conquistavam suas cartas de alforria. [...] Essas e tantas outras 'verdades' sobre a escravidão tanto povoaram e continuam povoando o imaginário brasileiro” (p.85-86).

A família escrava
Contrariando essas verdades distorcidas, Eduardo França Paiva nos mostra que a formação de famílias entre escravos era um acontecimento bastante comum no seio da sociedade mineira dos setecentos. Na verdade, essa prática, era interessante tanto para senhores como para cativos.

“Sem dúvida alguma, a formação de famílias escravas foi estratégia aproveitada tanto pelos escravos quanto pelos senhores. Se ela representava proteção e solidariedade para os primeiros, também significava maior e melhor controle sobre a escravaria e sobre a sociedade escravista colonial para os segundos” (p.150).

De acordo com o autor, a freqüente presença de famílias escravas promoveu uma relativa estabilidade das relações cotidianas entre proprietários e propriedades. Ela explicaria uma baixa referência a fugas, castigos e torturas, e também estaria relacionada à longevidade dos escravos em Minas Gerais.

As alforrias nas Minas
E foram essas formas flexíveis de convívio entre senhores e cativos que favoreceram acordos que resultavam em alforrias. O autor descreve o interessante processo da coartação, muito usado como meio para a liberdade, que consistia na compra da alforria através do pagamento em parcelas e durante determinado tempo, ao fim do qual a liberdade era alcançada. De acordo com França Paiva, o processo não era regulamentado pela legislação em vigor, mas tratava-se de prática e de direito costumeiros.

“Contrapondo-se, portanto, à idéia de que as alforrias dependiam apenas da boa vontade dos proprietários, os processos de coartação demonstram bem como os maiores interessados, os escravos, conseguiam intervir nessas histórias. Eles ajudaram a moldá-las, assim como participaram efetivamente na construção da própria sociedade escravista colonial” (p.168).

Uma ressalva importante
“Isso não significa, evidentemente, que as relações escravistas nas Minas ou no Brasil tenham sido doces, amenas e não tenham experimentado tensões, conflitos e desacordos. O exagero e o estereótipo, de todas as formas como são empregados, trazem grande prejuízo ao conhecimento” (p.156).

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